A energia que vem da favela

A energia que vem da favela

 

O ditado popular diz que a união faz a força e a prática corrobora mostrando que união também gera energia. Essa é a realidade da Rede Favela Sustentável (RFS), uma organização que trabalha por justiça climática e busca soluções nas favelas para as favelas. Criada a partir da Comunidades Catalisadoras (ComCat), que desde o início dos anos 2000 desenvolve projetos nas favelas do Rio de Janeiro, a rede atua para impulsionar potenciais já existentes nessas regiões, a fim de fomentar o que chama de “Desenvolvimento Comunitário com Base em Ativos”.

Um estudo da Secretaria Municipal do Meio Ambiente do Rio de Janeiro e da Universidade de São Paulo (USP) identificou que favelas e bairros periféricos podem registrar variações térmicas de até 10oC acima da média das regiões mais ricas e urbanizadas, sendo, portanto, mais afetados pelas mudanças climáticas. Isso já é realidade nas comunidades, e a RFS se mobiliza para que essas regiões sejam mais resilientes, autônomas e se firmem como potências sustentáveis.

Formada por 500 membros, com mais de 300 mobilizadores comunitários de 295 favelas e comunidades do Rio de Janeiro, em seus sete anos de atividade, a RFS já participou da instalação de painéis solares, da construção de biossistemas para tratar esgoto, da montagem de telhados verdes e hortas comunitárias e de coletas de dados para defender políticas de saúde e, na mais recente iniciativa, em prol de justiça energética.

Dados para mudança

Thaysa Santos tem 22 anos, é de São João do Meriti e, desde os 15, se dedica a projetos de mobilização social na Baixada Fluminense que envolvem sustentabilidade, arte e identidade. Ela é a caçula do grupo de 45 jovens e lideranças que desenvolveu a pesquisa “Eficiência Energética nas Favelas”, apresentada, em maio, durante a Semana Mundial da Energia, em Brasília.

Antes de entrevistarem as 1.156 famílias em 15 favelas da região metropolitana do Rio de Janeiro que participaram do levantamento, a jovem e seus colegas concluíram o curso “Pesquisando e Monitorando a Justiça Hídrica e Energética nas Favelas”. O treinamento de mais de 50 horas, realizado entre março e setembro de 2022, ocorreu para que aprendessem o passo-a-passo de uma pesquisa – da construção do formulário, passando pela abordagem nas entrevistas, até a apresentação dos dados.

“Quando eu pensava em interação cidadã de dados, achava que produzir dados era algo complexo, difícil, inacessível. Com o curso, percebemos que estamos gerando dados o tempo todo dentro das favelas e das instituições. Aprendemos que é possível sistematizar essas informações, montar gráficos, bancos de dados e, a partir disso, criar sistemas de mapeamento. Esse é um conhecimento que vou levar para o resto da minha vida”, conta Thaysa.

Diferentemente de pesquisas tradicionais em que os moradores são entrevistados por pessoas que não fazem parte daquele contexto, a análise de “Eficiência Energética nas Favelas” foi feita por pessoas das comunidades – que entendem e compartilham os mesmos desafios enfrentados pelos entrevistados. “Não é só bater na porta e fazer perguntas. Nós desenvolvemos uma relação ouvindo nossos vizinhos, gente que às vezes só conhecíamos de vista. As pessoas nos chamavam pra tomar um café, pra almoçar. Algumas favelas tiveram operações policiais e, mesmo assim, nós conseguimos levantar os dados, conversar, criar estratégias de articulação. Foi muito grandioso!”, diz a jovem.

O iCS, que já era parceiro da ComCat, financiou o curso, as bolsas destinadas aos jovens em formação e os desdobramentos que aconteceram após a conclusão do estudo.

Realidade energética 

A análise focou na renovação das concessões de energia elétrica, no acesso e na qualidade da energia fornecida às favelas, sendo que mais de 55% dos participantes ouvidos vivem abaixo da linha da pobreza, e 41,5% das famílias que ganham até meio salário-mínimo haviam ficado sem luz por mais de 24 horas nos três meses anteriores à pesquisa. Além disso, 32,1% dos entrevistados relataram já ter perdido eletrodomésticos devido a falhas na rede elétrica.

O estudo destacou, inclusive, a importância da Tarifa Social de Energia Elétrica (TSEE) e como a falta de acesso a uma tarifa acessível gera dificuldades nas comunidades – para se ter uma ideia, as famílias pagam pela energia elétrica, em média, o dobro do que seus orçamentos comportam, e 31% comprometem uma parcela desproporcional das finanças familiares com a conta de luz. Se a tarifa fosse diminuída, 69% das famílias disseram que gastariam mais com comida. Ademais, 68,7% dos participantes não conheciam a TSEE e, entre os que se encaixam nos critérios para receber o benefício, apenas 8% usufruíam dele.

A pesquisa também mostrou que o “gato” é, para os mais pobres, o único meio de acessar energia. Conforme a renda aumenta, a incidência de famílias que obtêm energia por esse meio diminui. A adoção da energia solar social também foi explorada como uma solução viável, capaz de trazer autonomia e sustentabilidade às favelas, beneficiando todo o entorno.

“Você só ganha quando as pessoas são empoderadas pelas próprias informações. Vimos a criação de uma rede de moradores que saiu mais fortalecida pelos próprios dados, mais autônoma e independente. Essa junção de dado com o povo é muito forte”, diz Thereza Williamson, diretora executiva da ComCat.

Mobilização em Brasília: exportando soluções

Em Brasília, a comitiva apresentou os resultados da pesquisa e discutiu soluções com autoridades federais. A agenda incluiu uma reunião no Congresso e participação na audiência pública “Transição Energética Justa: Papel Social da Energia Solar”.

Durante a visita à capital do país, a delegação compartilhou experiências bem-sucedidas de soluções energéticas.

“Foi muito poderoso compartilhar os dados e os depoimentos e ouvir retornos como os dos técnicos da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), que disseram não conseguir essas informações, essenciais para o monitoramento, que o grupo conseguiu. As trocas e o respeito que foram conferidos pelas autoridades para as lideranças foram incríveis tanto para a realização pessoal das lideranças e jovens quanto para entendermos quais futuros passos podemos dar”, diz Thereza.

O grupo também recebeu informações dos técnicos da Aneel, que desmistificaram, por exemplo, o “gato” como um problema exclusivo das favelas. “Eles nos contaram que isso também existe no asfalto e deixou a todos os jovens muito surpresos. É uma informação que ajuda a ver que a favela não é um problema para ser resolvido. Enquanto não mudarmos a narrativa em relação a ela, não a enxergarmos como um lugar repleto de possibilidades, não haverá desenvolvimento para viver com dignidade”, afirma.

 

 

 

 

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